Me lembro que na saída todos encheram os pés de esparadrapos. Eu pensei 'Nossa! Que frescura! Não precisa disto tudo" mal sabendo e percebendo que, quando vamos fazer algo que ainda não fizemos, uma boa dica é observar e imitar aqueles que já tem experiência naquilo. A confiança demais pode atrapalhar. Mas ainda teríamos três dias pela frente e muita coisa para ver e viver.
Até a chegada na primeira parada, em Rio das Pedras, todos tinham uma feição e ar de guerreiros, bravos homens decididos a fazer todo o trajeto. Eu até comecei a pensar que seria mais fácil do que realmente era.
O Laerte (Angolááááno) andava na ponta dos pés que nem barulho fazia e eu ao lado acompanhando, às vezes para pegar um pouco de "gás", outras vezes apenas para aproveitar de um dos fones do mp3 dele que ficava na minha orelha e, devido ao fio ser muito curto, eu tinha que ficar colado no Neguinho.
Depois de Mombuca, segunda parada, a coisa começou a pegar.
Paramos num boteco de beira de estrada, as caras dos guerreiros já começavam a ficar um pouco mais abatida. Tomamos ali alguns sorvetes e dá-lhe Gatorade para repor as energias que já começavam a ficar baixas. E ainda tínhamos que ir até Capivari naquele dia....
Saíram na frente o Carlinhos, Zancopé e o Angolano. Eu saí logo atrás e eles começaram a andar muito rápido. Dei uma paradinha para as necessidades básicas de beira de estrada e quando olhei para frente eles já tinham aberto uma boa distância. Fiquei um pouco indeciso se iria em frente acelerado para alcançá-los ou esperava o resto do grupo. Estes poucos minutos me atrapalharam ainda mais, pois nem chegou o grupo de trás e os da frente aumentaram ainda mais a distância.
Decidi acelerar e fui em frente. Era subida e não acabava nunca... lá no final da subida alcancei o Laerte e o Carlinhos. O Carlinhos era um capítulo à parte. Andava de cabeça baixa, não falava, não gemia, só sabíamos que estava vivo porque morto não anda. E vai andar assim lá na casa do chapéu, de cabeça baixa e perna atrás de perna.
O Angolano não gosta de ficar para trás e mandava bala também. Eu não tinha muita escolha tinha que acelerar.
O Neguinho (um dos vários apelidos do Laerte / Angolano / Neguinho / Cicarelli / Etc.) somente ouvia músicas do U2 e eu, com o fone na orelha e sem opção, logo dá-lhe U2.
Paramos e tiramos algumas fotos na estrada e foi muito legal. Conversei tanto com o Neguinho que já não tínhamos mais assunto, então ficávamos somente no U2. De vez em quando o Angolano esquecia que eu estava com o outro fone na orelha e dava umas dançadinhas, animado com as músicas, e saia o fone da minha orelha e voltávamos nós a ajeitar tudo e dá-lhe U2 de novo.
Naquela hora, se eu encontrasse o Bono Vox (vocalista do U2) ou dava um beijo nele ou matava o danado!
No trajeto até Capivari, notamos muitas garrafas de água jogadas na beira da estrada. Foram pessoas que passaram na nossa frente, mas infelizmente não respeitaram o trajeto que faziam jogando todo lixo ali mesmo.
Quando chegamos em Capivari eu estava muito cansado. Eu e o Neguinho fomos direto para o bar que tinha logo em frente e pedimos cerveja. Quando tomei desceu de forma maaraaviilhoosaa!! O Neguinho, para variar, tomou uma cachacinha. Tomamos três ou quatro até chegar o resto do grupo, cerca de 40 minutos depois que havíamos chegado.
Fomos a uma lanchonete, que ficava a poucos metros rua acima para comer um lanche.
Quando me levantei vi que a coisa já estava feia. Enquanto tomava a cerveja, o corpo deu aquela resfriada, quando me levantei começou a doer tudo. Só não doíam os cabelos e as unhas, o resto doía tudo.
Ali tomamos rapidamente um lanche, algumas fotos e fomos ao Hotel descansar.
No outro dia, logo que acordei e coloquei os pés no chão vi que estava meio travado. Todos os amigos disseram que era normal e que iríamos em frente sem problemas. Meus pés já doíam bastante e comecei a entender porque a maioria das pessoas havia enchido os pés de esparadrapo e eu "marinheiro de primeira viagem" não tinha nenhum esparadrapo nos pés.
A saída foi ótima. Todos novamente animados para mais um dia de caminhada. Eu comecei a contar piadas e falar que nem papagaio... No trajeto, pelo meio de um canavial, encontramos um pessoal de carroças que já estavam voltando e descansamos um pouco, tiramos mais fotos e eu grudado no Neguinho ouvindo advinhe o quê?? U2....
A próxima parada seria em Samambaia (se fosse a garota Samambaia ainda seria interessante...) mas chegamos numa vilinha de fim de mundo onde todos queriam ver um tal de Ratão, que o Xavier dizia que era meio porco e contava uma série de histórias da 'figura' ....
Ali apareceu o amigo Israel que chegou de carro trazendo os marmitex. Apesar de não me lembrar exatamente qual era o 'cardápio' me lembro que caiu muitíssimo bem.
Tomamos refrigerantes, e descansamos um pouco numa quadra de concreto velha...
Deitei um pouco no chão e vi que além das dores nos pés agora tinha também a b.. assada. Vim de Capivari até Samambaia, que o Ramiro dizia ter menos de 15 km e eu achava que já havia andando uns 50 e não chegava, e neste trajeto gastei quase um tubo de Hipoglós. Vocês não imaginam o que é passar Ipoglós na b.. sem poder parar de andar. Se parasse, ficava uns 100 metros para trás. A esta altura e cansaço, 100 metros você anda o dia todo e não consegue recuperar a distância que ficou para trás. O jeito era desenvolver alguma técnica... (imagina a cena) Hipoglós na mão, andava a passos mais largos e de pernas meio abertas e passava a pomada na b... era uma comédia, ou filme de horror não sei bem....
Voltando a Samambaia..... Deitei de pés para cima, naquela posição de mulher dar cria, e tentei descansar um pouco.
Na saída, quando coloquei o tênis, vi que já estava com os pés cheios de bolhas. Aconselharam-me a furar e passar uma linha, mas fiquei com medo de piorar ainda mais.
Logo na saída o Xexé desistiu, passou mal e resolver parar. A Rosa já havia desistido em Capivari, por muitas dores que sentia. Eu pensei em desistir também ali, pois meus pés já não agüentavam mais de dor. Deram-me um Dorflex e o Nelson gentilmente me ajudou, enfaixando meus pés bem apertados para eu continuar. Resolvi ir em frente, encostei no neguinho para dividir o fone de ouvido pensando que ele havia mudado o cantor, afinal não era possível que estava ali ainda o U2 e advinhem quem estava tocando???? Sim! U2.... Na falta de opção fiquei ali mais um pouco até que deixei o fone e o Neguinho começou a se distanciar de mim. Ingrato! Andei a viajem inteira grudado nele que nem carrapato ouvindo o U2 e a hora que larguei um pouquinho já sumiu na frente... Mas não tinha problema, eu estava decidido a chegar até a próxima parada e fui em frente...
Fizemos uma parada na frente de uma chácara que tinha uma mangueira com uma água excelente.
Descansamos um pouco e dei uma olhada nos meus pés. Não vou nem descrever para vocês não ficarem com dó de mim.
Na chegada a Salto, eu achava que já era realmente a chegada, tinha uma descida longa e cheia de pedras. Foi muito difícil. Os joelhos agora também doíam. Desci devagar e vi uma parte do grupo se distanciar um pouco à frente.
Entramos em Salto e paramos para tomar uma garapa de cana. Meu Deus como estava boa aquela garapa. A melhor que tomei até hoje. Não sei se pela real qualidade ou pelas circunstâncias. O Angolano (Ingrato!) pegou minha máquina fotográfica e quase gastou toda bateria tirando fotos de uma procissão que estava saindo de uma igreja na frente.
Acabamos de tomar a garapa e era somente ir para o hotel descansar. Eu, todo animado, ou talvez nem tanto, perguntei se estávamos próximos do hotel, mas como desgraça pouca é bobagem, me disseram que teríamos que atravessar a cidade, pois o hotel era do outro lado.
Pensei "Uai porque não entramos por lá então?" mas seguimos em frente. E além disso, já estávamos em Salto e não poderia ser tão longe assim o tal do hotel. Me enganei de novo. Era muito longe o tal do hotel, apesar de que a esta altura do campeonato e com a canseira que estava tudo era longe...
O Zancopé estava com os pés que parecia uma bola de pano, meio inchado e cheio de linhas amarradas por todos os lados e nem reclamava de dores... eu também via que os outros estavam cansados porém já tinham feito o mesmo trajeto outras vezes e sabiam onde economizar energia e onde avançar. Eu, sem experiência naquela caminhada, percebi que havia gastado muita energia no primeiro dia, andando no ritmo do Angolano e do Carlinhos, aliás, fiquei pensando em boa parte do trajeto que o Carlinhos era mudo. Ele ficava de cabeça baixa e andando sem falar nada. Uma vez que falou e eu estava meio distraído quase desmaiei de susto. Pensei que iria Moréééééééééér!!!!!
Para chegar no Hotel tinha uma grande descida, que me doia os joelhos e depois uma grande subida que doía todo o resto e até os joelhos de novo. Novamente os cabelos não doíam, mas as unhas já começavam a doer também.
Perto do Hotel paramos em uma padaria e pedimos pizza e várias, várias e várias cervejas para aliviar as dores.
Na saída da padaria, com o sangue já mais frio as dores aumentaram ainda mais e foi complicado chegar ao Hotel que agora já estava muito perto há cerca de duas ou tres quadras.
Na entrada do Hotel tinha uma escada. Eu parei, olhei e depois de respirar duas ou trezentas vezes subi as escadas.
Fui direto tomar banho, pois sabia que se me deitasse não levantaria muito fácil.
A água escorria encardida pelos meus pés. Naquele dia havíamos andado um trajeto enorme, pelas minhas dores mais de 400 km, em estradas de terra e a sujeira nos pés e pernas era grande.
Tomei aquele banho meio "tcheco" e fui para cama. Em seguida chegaram o Neguinho e o Xave que iam dormir no mesmo quarto. Poucas conversas e já apaguei, anestesiado de canseira e com a ajuda das cervejas que tínhamos tomado na padaria.
Nem parecia que eu havia fechado os olhos e já estava na hora de acordar. Aliás, não estava não, pois eram cerca de três da manhã ou ainda um pouco antes disso. Isso não é horário de homem acordar. Só super-homem consegue.
O Angolano começou a dar pulinhos no quarto para aquecer e eu não acreditava naquilo, olhava para cima e pensava "Deus me dá paciência, pois se me der força eu dou um pau no Angolano!".
Eu nem me mexia de dor e o danado dando pulinhos....
O Xave estava também bastante cansado, mas muito convicto, aliás, como esteve todo trajeto, em concluir de qualquer jeito. Toda hora ele me enchia o saco dizendo que eu era mole e que não estava agüentando, pois estava sem propósito para a caminhada. Na verdade ele tinha razão em parte do que dizia, pois eu fui à caminhada para ver como seria e por uma aposta que fiz com ele alguns meses antes.
A aposta era:
- Se o Xavier chegasse ao final da caminhada com 90 kg eu pagaria uma caixa de cerveja Original.
- Se eu concluísse a caminhada até o final o Xavier me pagaria também uma caixa da mesma cerveja.
Eu, muito ousado, pensava “Vou ganhar duas caixas de cerveja”. Uma ao chegar e outra ao pesar o Xave. Ele nunca iria chegar lá com 90 kg. Era barbada. Se eu chegasse levaria os dois prêmios da aposta.
Voltando ás três da manhã no Hotel em Salto... Enfaixei meus pés e tentei andar. As dores eram muito fortes. Tirei as faixas e examinei melhor o estado dos pés e vi que as bolhas já grudavam umas nas outras formando cordões.
Passei esparadrapos e tentei novamente. Mais uma vez as dores eram fortes. Por último, tirei os esparadrapos e coloquei somente as meias.
Desci devagar as escadas e encontrei todos lá em baixo prontos e animados para sair.
Estava frio, mas todos estavam muito animados. Andei um pouco de um lado pro outro e comecei a achar que estas caixas de Original estavam me custando muito caro. Os pés inchados, cheios de bolhas, os joelhos e todo resto do corpo dolorido e a b... toda assada. Duas caixas de Original não valem tudo isto não acham?
O preço já estava caro demais para mim.
Ali percebi que realmente teria que desistir. Entendi que não dá para fazer um trajeto de 130 km a pé sem ter algum tipo de propósito e que as duas caixas de Original não significavam nada perto do real propósito de passar por uma provação e dores como estávamos fazendo.
Entendi que todos sentiam dores iguais, maiores ou menores que eu, mas tinham propósitos diferentes dos meus. Alguns chegariam nem que demorasse um mês ou mais, com dor ou sem dor, com câimbras ou o que fosse. Infelizmente não era o meu caso naquela ocasião..
Todo o grupo se despediu de mim um a um e percebi em cada aperto de mão o respeito mútuo. Eu, admirado por eles estarem seguindo adiante e ainda assim percebi um grande respeito de todos eles por eu estar desistindo ali. Alguns até me cumprimentaram dizendo "Parabéns por ter chegado até aqui!”.
Absolutamente nenhum deles fez ou expressou qualquer tipo de crítica ou desrespeito. Eles já haviam feito este trajeto outras vezes e já haviam visto muitos desistirem sem sequer chegar até aquele ponto em que eu cheguei.
Percebi que eles respeitavam por vários motivos, porque também estavam cansados, porque sabiam que eu não havia me preparado adequadamente para ir até o final ou simplesmente, e mais provavelmente, pelo simples companheirismo e respeito que conquistamos naqueles dois dias e cerca de 90 km que eu andei ao lado deles.
Percebi que a vitória não era necessariamente coletiva e sim individual. A Rosa foi vencedora ao conseguir chegar até Capivari. Eu vi e senti o quanto é difícil.
O Xexé, que parou em Samambaia foi um grande vencedor e eu admiro ter chegado até lá. Ele venceu e foi até seus limites.
A decisão de parar é muito pior que a decisão de seguir em frente. Eu pude provar deste sentimento. Ao ver o respeito dos meus amigos vi que era uma decisão única e exclusiva minha. Não importava qual seria a decisão, seguir ou parar, eles estariam ali. Seguiriam comigo ou me respeitariam por ter chegado até ali, mesmo não tendo concluído o trajeto inteiro.
No momento me senti mal, mas depois percebi que havia sido vitorioso, pois fui até os meus limites. Talvez pudesse ir adiante, quem sabe. Mas não era daquela vez. Não aquele dia.....
Ali minha viajem havia acabado.
Fiquei olhando os meus amigos sumirem no escuro e fiquei ainda mais orgulhoso por todos eles.
Me diverti muito na viajem. Foi ótimo e inesquecível andar tanto tempo ao lado de todos que estavam ali.
No outro dia de manhã fui de carro levar o café da manhã a todos que seguiram o trajeto. Depois, também de carro fui até a Igreja, que era o ponto final do trajeto.
Mesmo não tendo chegado lá andando, fiquei muito satisfeito em estar lá.
Alguns dias depois as dores haviam sumido completamente e as bolhas secadas.
As lembranças não sumiram e nem secaram. Ficaram marcadas e gravadas para sempre.
Um grande beijo a todos. Foi um grande orgulho para mim, fazer aquela caminhada ao lado de todos vocês!!
Quem sabe não nos vemos na próxima hein!!!!
Forte abraço,
Jurandir Drape